sábado, 5 de maio de 2012

ZERO - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO


ZERO - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO

ZERO – IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO

EDITORA CODECRI – RIO DE JANEIRO, 1979

 

            Mais se assemelha a um poema dadaísta de amontoado de coisas que parece não ter conexões. Depois você vê que há uma conexão. Como se não houvesse coerência, coesão, mas há coerência e coesão. A coerência e a coesão da subversão. O próprio livro sentiu-se vítima de insurgência, o próprio autor e também nós, leitores, que se ficarmos calados podemos ser condenados por omissão. Quando se inicia a leitura, tem-se a vontade de parar. Desistir por alguns minutos ou horas ou dias, até anos. Mas a curiosidade – dote de um bom leitor – mantém firme minha persistência. Depois do terreno arenoso, não vem a bonança. O livro todo é árduo, árido - leitura dificultosa. Isso não é um ponto negativo, pelo contrário. Sobrevive o mais forte. Talvez esse seja o mote de José, personagem enigmático, carismático, atormentador que comunga com vários personagens da literatura brasileira como Fabiano, de Graciliano Ramos e Macunaíma, de Mário de Andrade.

            Aliás, ao ler Zero, lembrei-me de Mario de Andrade e seu Macunaíma. Um texto truncado, personagens plurais, comportamentos indecifráveis e angustiantes, heróis e anti-heróis, destruição da visão romântica do estado de coisa, o caráter sem-caráter. Macunaíma talvez seja a gênese, Zero, o apocalipse.

            Zero é metalinguístico, pois menciona-se dentro da própria ficção, sendo banido pelos governos autoritários que vislumbravam imoralidade em seus escritos. Não que não haja imoralidade, palavras de baixo calão, cenas de sexo selvagem, escatologias. (É bom dizer que a escatologia de Zero tanto envolve a coprologia, as coisas sórdidas e obscenas as expressões chulas e fecais como a preocupação do destino do mundo, quase profético – e toda a literatura deve ter esse misto de mito profecia – elaborando uma teoria do destino e propósito humano. Mas tudo isso é subjetivo. Tudo é variável, como poderia dizer o próprio José: depende. O que é tudo isso se não a essência pura quando se encontra a humanidade distante de seu sentido ou próximo ao sentido que se constrói diante uma realidade tão imunda. Então José diz: depende.

            Zero não é só profético, é religioso e as semelhanças com a bíblia não tem nada de coincidência: quando Gê, Gê é o “messias” que o governo acredita ser comunista (é um comunista), assassina o dono do bar, rouba o vinho e transforma groselha em vinho para socorrer o casamento de pobres noivos, quando Rosa persegue uma família e se guia por uma estrela ou quando o governo manda matar todas as crianças com idade do filho do Gê, o menino com música na barriga, para matar o filho do Gê.

            O texto também é poético, com contribuições profundas de versos filosóficos, talvez escritos pelo próprio Zé: “Inscrição de Privada/ (Grafitti) /Cagar é lei deste mundo/Cagar é lei do universo/Cagou dom Jorge segundo/Cagou quem fez este verso” p. 31//“Inscrição de privada:/Neste lugar solitário/Toda valentia se apaga/O mais forte só geme/O mais corajoso se caga” p.67// “Inscrição de privada/ (grafitti) /Neste lugar solitário/Todo valente se apaga/Todo homem geme/Todo corajoso se caga” p. 109.

            José me lembra Carlos Drummond de Andrade, ou melhor, o “E Agora José?”. José procura emprego, José procura mulher, José procura se acertar na vida e não mais borrar as calças, não mais apanhar de 5 em 5 minutos da polícia ou da polícia política, ou do POPO ou da POFE ou do POSU (Polícia de Supersegurança) ou do próprio Presidente Militar Ministro da Guerra e Salvador do Povo estúpido. José vira assaltante, vira assassino para financiar uma casa para Rosa na Caixa Econômica, José quer prostituta, José não quer trabalhar, José quer deitar com Rosa – E agora José?

            Talvez a música preferida de José, ou Zé para os íntimos, seria Fotografia 3x4 de Belchior. Ou “isso tudo acontecendo e eu aqui na praça dando milhos aos pombos” de Zé Geraldo

            Numa linguagem que denuncia e caracteriza cada personagem o livro, porque literatura, não deu conta da normatividade da gramática. Mas é subversão linguística também. Literatura não é compêndio de gramatiquice embasbacada. Literatura é vida, gramática é lápide. A narrativa, dos vários narradores presentes, se mistura com pensamentos, desejos das personagens, onomatopéias, barulhos citadinos, anúncio e propagandas de televisão, rádio, outdoor, fast-food. Átila, por exemplo, se apaixonava por todas as garotas de sutiã que apareciam fotografadas nos outdoors. A narrativa é flash de acontecimento como que se inundando na mente do escritor é derramada na do leitor e assim parece tudo desorganizado, mas na verdade é organizado e com tempo, esforço e paciência vai se encontrando conexões. Assemelha-se ao fluxo de pensamento. Será que o pensamento é assim? O narrador é personagem, depois é observador. Há mudança constante de tempo e espaço sem prévio aviso como uma sobreposição contínua de acontecimentos, como fluxo de pensamento sobre muita coisa. Um misto de conto, romance, novela e poesia, como nós alerta as orelhas do livro.

            Clássico, na minha visão reducionista de ver as coisas. Acredito que José não gostaria de ser Clássico, e duvido muito que algum governo possibilite a leitura dessa epopéia nas salas de aulas sobre suas jurisdições. O negocio é ler escondido no banheiro e quem sabe a verve poética de Zé não nos contagie e comecemos a pensar. Livro para ser lido 2 vezes na vida e outras 2 na morte.

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